Artigo - 03/12/2009 | Escrito por Daniel Romeiro e Marcelo Gaspar Gomes Raffaini

O momento do interrogatório e as novas reformas da lei processual penal: a expedição de carta precatória para oitiva de testemunha suspende a realização do ato de interrogatório?

A par das diversas questões que têm ocupado juízes, membros do Ministério Público e advogados quanto à aplicação do novo rito trazido pela Lei 11.719/2008 - como as relacionadas a direito intertemporal, à importância da figura do ofendido etc. -, e que têm merecido a adequada atenção dos doutrinadores, propomos, aqui, a análise da questão do momento de realização do interrogatório, mais especificamente na circunstância de haver a pendência de cumprimento de cartas precatórias para oitiva de testemunhas.Na hipótese de haver testemunhas de acusação ou de defesa residentes em outras comarcas cujas oitivas foram deprecadas, surge a dúvida acerca do momento em que se deve realizar o interrogatório do acusado: (i) após o retorno das cartas precatórias cumpridas; (ii) depois de transcorrido o prazo para seu cumprimento; ou (iii) na própria audiência una, ao final da oitiva das testemunhas residentes na comarca do juízo da causa?Para se responder a questão acima, devemos buscar diferentes linhas de interpretação do dispositivo legal, começando com aquela que primeiro ocorre ao intérprete: a interpretação literal.De acordo com a redação do novo art. 400 do Código de Processo Penal, durante a audiência de instrução e julgamento, "proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareções e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. A leitura do dispositivo legal não deixa dúvida quanto à ordem dos atos e, principalmente, quanto ao interrogatório ser último ato da audiência una (interrogando-se, em seguida, o acusado)". A circunstância de existir testemunhas a serem ouvidas por cartas precatórias, entretanto, não é abordada diretamente pelo texto do artigo, senão para admitir a possibilidade de que ocorra a deprecação das oitivas (ressalvado o disposto no art. 222 deste Código).

Todavia, ao admitir a possibilidade de expedição de cartas precatórias para oitiva de testemunhas, fazendo remissão ao art. 222 do CPP, estariam incluídas aí, também, as previsões dos §§ 1º e 2º do mesmo artigo(1), segundo as quais as cartas precatórias não suspenderiam o andamento do feito?

Vê-se, assim, que a interpretação literal, embora direcione a questão, não a resolve, devendo o intérprete recorrer à outra modalidade, qual seja, a interpretação sistemática dos dispositivos legais envolvidos.

Deve-se, então, integrar ao texto do art. 400 o do art. 222, sendo que, numa primeira leitura, pode-se concluir que os parágrafos do art. 222 seriam também aplicáveis à hipótese aqui estudada, no sentido de que, não obstante haja carta precatória pendente de cumprimento, uma vez esgotado o prazo para a realização do ato, o seu retorno não seria fundamental para a realização do interrogatório.

Entretanto, chamamos a atenção para o §3º, do art. 222, que também deverá concorrer para a interpretação sistemática que se propõe. O §3º, introduzido pela Lei nº 11.900/2009, dispõe que "na hipótese prevista no caput deste artigo, a oitiva de testemunha poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento"(1).

Ou seja, o referido dispositivo abre a possibilidade para que a oitiva de testemunha residente em outra comarca seja feita no momento da audiência de instrução e julgamento, possibilitando ao acusado e à defesa técnica o acesso em tempo real ao depoimento.

É claro que entre a vontade do legislador e a realidade do Poder Judiciário nacional existem anos de atraso e escassez de recursos para a implementação da tecnologia necessária à realização de videoconferências. Por outro lado, é certo, também, que, até lá, o acusado não pode arcar com o ônus da ineficiência do Estado-Juiz.

Por isso, ainda que com novos contornos, a questão remanesce: diante da impossibilidade de aplicação do §3º do art. 222 do CPP (oitiva por videoconferência), devem ser aplicados os §§1º e 2º do mesmo artigo, interrogando-se o acusado antes da oitiva de testemunha residente em outra comarca?

Devemos, então, socorrer-nos de outro método de interpretação: a interpretação autêntica.

Verificando-se o texto da Mensagem nº 213/2001, do Ministro de Estado da Justiça ao Presidente da República, quando expõe as razões do Projeto de Lei nº 4.207/2001, mais tarde transformado na Lei nº 11.719/2008, colhemos os seguintes trechos: "Para garantir a eficácia do processo e a ampla defesa, visando a favorecer a punibilidade concreta das infrações penais, mantendo-se todas as garantias do acusado, previstas na Constituição Federal, leis e tratados celebrados pelo Brasil, estão sendo propostos procedimentos penais ágeis e objetivos, cuja dinâmica será facilmente notada pela sociedade.São adotadas técnicas novas que garantem o cumprimento de seu objetivo, tais como a efetiva defesa do acusado antes do exame da admissibilidade da denúncia; a obrigatoriedade de fundamentação da decisão que recebe ou rejeita a denúncia; interrogatório do acusado somente após a produção da prova; (...)"(2).

A mens legis, portanto, indica a razão de ser da substancial alteração na ordem dos atos processuais introduzida pela Lei nº 11.719/2008. O objetivo da previsão do interrogatório como último ato processual instrutório decorre da importância que se lhe atribui, dentro do modelo acusatório, como meio de defesa.

Conforme lição de Luigi Ferrajoli, "(...) no modelo garantista do processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação"(3).

Bem por isso, a inovação trazida pela Lei nº 11.719/08, consistente na colocação do interrogatório como último ato da instrução, tal qual no procedimento sumaríssimo da Lei nº 9.099/1995, presta-se, com toda certeza, a aperfeiçoar a finalidade do ato como meio de defesa, como, aliás, confirma Antonio Scarance Fernandes, membro da comissão que elaborou o projeto da atual reforma processual penal, ao afirmar que a defesa"(...) melhor seria exercida pelo acusado após conhecer a prova contra si produzida"(4).

O que pretende a Lei é que, após a produção de todas as provas e da oitiva de todas as testemunhas, ouça-se o acusado para que este, perante o Juízo, dê sua versão dos fatos e explique tudo quanto lhe foi imputado.

Assim, ao contrário do antigo Rito Ordinário, o acusado não só tem oportunidade de se defender das imputações feitas pela denúncia, como, também, pode esclarecer e refutar, com suas próprias palavras, eventuais incriminações trazidas pelos depoimentos, por documentos e por demais meios de prova produzidos durante a instrução.

Portanto, na circunstância de haver expedição de carta precatória para oitiva de testemunha e na impossibilidade de se proceder a essa oitiva por meio de videoconferência, o interrogatório do acusado deve se dar somente após o retorno dessa precatória, sob pena de esvaziamento do momento que lhe é garantido para a autodefesa.

Nesse caso, estar-se-á desvirtuando o propósito da nova lei processual penal e, por consequência, violando-se os princípios da ampla defesa e do devido processo legal.

NOTAS

(1) §1º - A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal. §2º - Findo o prazo marcado, poderá realizar-se o julgamento, mas, a todo tempo, a precatória, uma vez devolvida, será junta aos autos.

(2) Diário da Câmara dos Deputados, 30 de março de 2001, p.9509 û grifamos e sublinhamos.

(3) Direito e Razão: teoria do garantismo penal, 2a ed. rev. e ampl., São Paulo, RT, 2006, pp.559/560.

(4) A mudança no tratamento do interrogatório in Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 200, julho 2009, pp.19/20.

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