Artigo - 31/10/2025 | Escrito por Roberto Podval e Marcelo Raffaini
O caso Brennand e o perigo da história única no processo penal
Nos últimos anos, a pauta do combate à violência contra a
mulher — absolutamente legítima, necessária e inadiável — ganhou espaço
expressivo no debate público, nos campos cultural, ético, político e social.
Trata-se de uma conquista civilizatória que deve ser preservada e, mais ainda,
aprofundada. É dever de todos, como sociedade, manter postura firme e
intransigente diante de qualquer violação aos direitos das mulheres.
Um ponto sensível, entretanto, impõe reflexão: o risco de
que esse discurso, ao ultrapassar os limites sociopolíticos de sua nobre
vocação transformadora, venha a influenciar indevidamente a lógica decisória do
sistema de justiça criminal, instaurando uma espécie de modelo único de
interpretação — uma “história única”.
O conceito, tomado de empréstimo da escritora
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, revela o perigo de reduzir
pessoas e situações complexas a um único enredo possível — uma narrativa
totalizante que antecede os fatos e dispensa o contraditório. No âmbito do
processo penal, a “história única” manifesta-se sempre que o
julgador, ainda que movido por causas legítimas, passa a enxergar antes
o símbolo do que a prova; sempre que o caso concreto deixa de ser um
acontecimento a ser demonstrado e converte-se em fragmento de uma
narrativa preexistente — aquela em que a vítima invariavelmente diz a
verdade e ao acusado a verdade já não se concede.
O processo penal é espaço de reconstrução racional dos
fatos, delimitados por uma acusação e demonstrados por provas objetivas. Sempre
que a narrativa se antepõe à prova, o julgamento deixa de ser um exercício de
razão para converter-se em gesto emblemático, guiado por percepções morais ou
por sentimentos, e não por evidências.
Nossa experiência recente não deixa dúvida de que esse risco
se materializou, com resistência indômita, nos casos envolvendo o
empresário Thiago Brennand. Nos processos em que restou
condenado, evidenciou-se que o sistema de justiça deixou de ser espaço de
apuração para transformar-se em palco de mera confirmação de um enredo
ideológico prévio. Reforçaram-se estereótipos que, ainda que partam de
dados reais e dolorosos da sociedade, não traduziam as
situações particulares submetidas a julgamento.
Nossa experiência demonstrou que o fenômeno da “história
única” não é uma abstração teórica. Nos processos envolvendo Thiago
Brennand, o que se viu foi o afastamento progressivo das
narrativas originais das denunciantes para a construção judicial de hipóteses
interpretativas jamais declaradas por elas.
Quando o relato emergia em contradição com a prova, não se
questionava a narrativa da vítima: reinterpretavam-se os fatos por elas
declarados para que o símbolo permanecesse intacto. Relações consensuais
– devidamente provadas por vídeos localizados pela defesa -
foram relidas, para se ter um “início consentido”, posteriormente transmutadas
em “violentas”; contradições explícitas, convertidas em nuances emocionais; e
provas sabidamente falsas — como fotografias de lesões de pessoas
aleatórias, apresentadas como se retratassem a vítima — tiveram sua
falsidade relativizada sob o pretexto de não comprometerem o núcleo fático,
como se a fraude pudesse ser dissociada da própria credibilidade da narrativa
da vítima.
Em cada caso, as decisões judiciais deixaram de
refletir o conteúdo – da prova - dos autos para reafirmar uma
coerência moral: a de que a vítima, por definição, não mentiria. Reconstruiu-se,
assim, o discurso das denunciantes para ajustá-lo às provas — ainda que à custa
da verdade real. É notório – e estarrecedor - o esforço de ressignificação
judicial do discurso da vítima, destinado a preservar o arquétipo moral da
verdade, mesmo em dissonância com as provas.
Essa inflexão marca a transição perigosa entre o julgamento
jurídico e o julgamento ideológico: quando a prova perde seu lugar de critério,
o processo converte-se em ritual de confirmação simbólica do discurso da
vítima. É precisamente nesse ponto que a “história única” se instala —
quando a narrativa antecede os fatos e os molda para manter-se crível, e a
verdade deixa de ser buscada para ser preservada como dogma.
Ignorou-se, nos casos envolvendo Thiago Brennand —
a nosso sentir, de forma paradoxal e grave — o próprio verbete que consagra a
importância da palavra da vítima, pois moldou-se a narrativa às
evidências, de modo que permanecesse incólume a coerência simbólica de quem
a profere. Eis, em essência, o âmago do perigo da “história única” no
processo penal: quando a palavra já não é confrontada pela prova, mas
adaptada a ela, para que continue a ocupar o lugar de “verdade”.
Quando o discurso social legítimo — o combate à violência
contra a mulher — torna-se a lente exclusiva de interpretação de qualquer caso,
a individualidade do processo desaparece. O acusado deixa de ser julgado pelos
fatos e passa a ser julgado como personagem de um enredo social prévio e
imutável, na medida em que se tolera o ajuste da palavra da vítima à prova.
Não se trata, de modo algum, de enfraquecer o enfrentamento
à violência de gênero. O alerta é outro: a justiça que condena sem prova, ainda
que movida por uma causa justa, converte-se em instrumento de reafirmação moral
e deixa de servir à verdade. A imparcialidade, nesse contexto, não é
neutralidade — é coragem institucional.
Preservar o processo penal de pressões externas não
significa proteger o acusado em detrimento da vítima; significa proteger a
própria ideia de Justiça. É assegurar que nenhuma narrativa — por mais justa ou
necessária que seja — possa anteceder a prova.
Um Judiciário independente, comprometido exclusivamente com os autos, é a mais alta expressão da civilização jurídica e a maior garantia de um julgamento justo. E somente julgamentos justos — baseados em fatos, não em “histórias únicas” — podem honrar, ao mesmo tempo, as vítimas, os acusados e a própria Justiça.
*artigo publicado no Blog do Fausto Macedo, no Estadão, em 31 de outubro de 2025
https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-caso-brennand-e-o-perigo-da-historia-unica-no-processo-penal/
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