Artigo - 06/06/2024 | Escrito por Sofia Podval e Fuziger
Da (Im)possibilidade de utilização da DERCAT como elemento informativo para a instauração de inquérito policial
1.
Introdução (ou: mais um
exemplo de insegurança jurídica no emaranhado normativo do direito penal
econômico brasileiro)
A
Lei n. 13.254/2016 dispõe, conforme sua própria ementa, sobre o "Regime
Especial de Regularização Cambial e Tributária" (RERCT) de recursos, bens ou
direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente,
remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados
no País.
Tal diploma legal trouxe em seu bojo hipóteses de extinção da
punibilidade no âmbito de diversos delitos, em diferentes legislações, tais
como a evasão de divisas (art. 22 da Lei 7.492/1986); crimes tributários do
art. 1º da Lei 8.137/1990; sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A
do Código penal), dentre outros.
Para tanto, a Lei n. 13.254/2016 exigia uma declaração na qual se
afirmava que os bens a serem repatriados eram de origem ilícita, denominada de
"Declaração de Regularização Cambial e Tributária" (conhecida como DERCAT).
No entanto, a Lei foi silente sobre um aspecto bastante sensível,
relacionado a um desvio da finalidade precípua da DERCAT: se tal declaração
poderia ser utilizada como elemento informativo para a instauração de inquérito
policial, em hipótese de exclusão do programa de repatriação, tema que será
pormenorizado mais adiante
Diante de tal lacuna, a Receita Federal realizou diversos
esclarecimentos através do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2018. Todavia, e
infelizmente sem qualquer ineditismo, os esclarecimentos suscitaram ainda mais
dúvidas.
Criou-se, assim, um panorama de incertezas e, por conseguinte,
insegurança jurídica para contribuintes que almejam aderir ao programa de
repatriação. Isso porque, sob o pretenso verniz de regularização e anistia (via
extinção da punibilidade) de delitos pregressos por meio da DERCAT, ter-se-ia a
hipótese do uso das próprias informações fornecidas pelo contribuinte como
elemento ensejador de eventuais inquéritos policiais, por exemplo, por evasão
de divisas, em caso de exclusões do programa de repatriação.
Ou seja, um pretenso benefício tornar-se-ia o ponto de gênese da ação
persecutória estatal contra aquele que buscara aderir ao programa de
regularização.
Trata-se,
assim, de mais um, dentre muitíssimos exemplos de carência de sistematização,
clareza e precisão normativa, na amálgama de normas jurídicas que regulam o jus
puniendi em crimes financeiros, estes que são exemplos notáveis da
"administrativização"[1] do
Direito penal brasileiro e dos excessos de leis penais em branco e
criminalização do perigo abstrato.[2]
No
âmbito deste artigo, buscar-se-á discutir a (im)possibilidade da utilização da
Declaração de Regularização Cambial e Tributária (DERCAT) como elemento
informativo para a instauração de inquérito policial.
2.
Brevíssima contextualização e pormenorização de aspectos centrais da
Lei 13.254/2016
Sob o panorama de acentuada crise econômica no Brasil um cenário de crise econômica no Brasil, a Câmara dos Deputados, por meio de uma iniciativa do Poder Executivo, criou o Projeto de Lei nº 2960/2015, inspirado em legislações de outros países, o qual tinha como objetivo "regularizar apenas as divisas com origem lícita, mediante anistia em relação aos crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal, com prazo de duração previamente definido, e, com isso, estimular brasileiros que possuam ativos não declarados no exterior a reinvestir esses valores internamente."
Tal projeto foi promulgado sob a Lei 13.254/2016, que instituiu o chamado "Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária" (RERCT).
Conforme consta no Projeto de Lei, a pessoa física ou jurídica que tinha intenção de repatriar os valores no exterior, ou seja, aderir ao programa de repatriação, deveria realizar uma "descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014, a serem regularizados, com o respectivo valor em reais."
Para que o contribuinte possa aderir ao programa de repatriação é
necessário que ele: I. seja residente ou domiciliado no país em 31 de dezembro
de 2014; II. que ele tenha sido ou ainda seja proprietário ou titular de
ativos, bens ou diretos até 31 de dezembro de 2014; III. não possua saldo de
recursos ou título de propriedade de bens e direitos também nesta data; IV. não
seja condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes mencionados no
tópico anterior; V. não seja detentor de cargos, empregos e funções públicas de
direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou
afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.
Os artigos 2º e 3º da Lei 13.254/2016 versam sobre recursos, bens ou
direitos passíveis de repatriação. No mesmo ano de promulgação de tal Lei e com
o objetivo de regulamentá-la, a Receita Federal editou a Instrução Normativa
1.627/2016, que enfatizou a análise taxativa dos bens passíveis de repatriação,
em um rol com hipóteses expressas de recursos, bens e direitos.
Todavia, há um ponto extremamente tormentoso na Lei 13.254/2016, uma vez que ela determina que os recursos, bens e direitos suscetíveis à repatriação devem ter procedência lícita. Em que pese a tal necessidade de procedência lícita, em nenhum momento a lei determina como essa questão deveria ser comprovada, somente sendo necessária a declaração por parte do contribuinte.
Diante dessa e outras dúvidas relacionadas à Lei de Repatriação, a Receita Federal, em 2016, lançou o "Dercat - Perguntas e Respostas 1.0", que era uma espécie de "perguntas e respostas frequentes", para auxiliar nas dúvidas acerca do programa. E de acordo com as informações transmitidas pelo órgão do governo o declarante não era obrigado a comprovar a origem lícita dos recursos, como se pode observar da resposta à pergunta de número 40: Pergunta: "O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos?" Resposta: "O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB."
No
entanto, após 2 anos da regulamentação, a Receita Federal lançou uma nova
versão do "Dercat - Perguntas e Respostas", através do Ato Declaratório
Interpretativo número 5 que inseriu cinco novas notas, sendo 3 delas, somente
na pergunta 40, que mereceu transcrição literal a seguir, eis que seu conteúdo
é estarrecedor pela mudança da orientação original:
40) O declarante precisa comprovar a origem lícita
dos recursos?
R: O contribuinte deve identificar a origem dos
bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat.
Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as
informações são falsas é da RFB.
Nota 1: A desobrigação de comprovar documentalmente
a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat,
assim como ocorre na demais declarações prestadas à RFB.
Nota 2: A subsunção da hipótese legal de ingresso e
permanência no RERCT poderá ser objeto de procedimento de ofício específico
para tal fim.
Nota 3: A RFB, mediante intimação, concederá prazo
razoável para que o optante ao RERCT apresente a comprovação sobre a origem
lícita dos recursos regularizados.
Portanto, com a adição das três notas (destacando-se a nota 3), resta evidente a mudança no entendimento quanto à necessidade de comprovação da origem dos bens declarados. Isso porque antes existia uma presunção de veracidade das informações enviadas pelo contribuinte à Receita Federal, e caso o órgão do governo discordasse, cabia à própria Receita Federal comprovar a origem ilícita dos bens.
Entretanto, após o Ato Declaratório Interpretativo de 2018, em caso de dúvida, o contribuinte era obrigado a encaminhar as documentações para que se comprovasse a ilicitude dos recursos, o que gerou uma enorme insegurança jurídica quanto ao programa de repatriação.
E caso os contribuintes decidissem não apresentar a documentação requisitada, a Receita Federal os excluía do programa de repatriação, como ocorreu em diversos casos, ensejando judicialização de alguns deles, em autos que tramitam em segredo de justiça, tendo em vista o objeto das ações.
Todavia, de início é necessário ressaltar que de acordo com o art. 100 do CTN e o inciso III do art. 1 do Regime Interno da Receita Federal, os Atos Declaratórios Interpretativos são normas complementares e eles servem para auxiliar o cumprimento das leis. Portanto, resta evidente a partir da análise legal, que os Atos Declaratórios não podem alterar o conteúdo das leis, e foi exatamente isso que ocorreu no ADI 5/2018.
Em virtude dessa mudança de entendimento, houve o ajuizamento da demanda, em tramite perante a 2ª Vara Federal de Joinville/SC, sob o nº 5000792-98.2021.4.04.7204, requerendo, dentre outras questões, a declaração da ilegalidade do Ato Declaratório Informativo SRFB 05/2018. Na sentença, o Juízo de 1º Grau julgou procedente em parte o pedido para reconhecer incidentalmente a ilegalidade do Ato Declaratório na parte que alterou o item 40 das Perguntas e Respostas realizadas pela Receita Federal.
No entanto, ainda que, em tal hipótese judicializada, não houvesse sido reconhecida a ilegalidade do Ato, parece-nos, em virtude do princípio da não autoincriminação, que o contribuinte não tinha o dever de entregar os documentos solicitados pela Receita Federal para comprovar a licitude dos bens. Isso porque, essa documentação poderia futuramente o incriminar.
Em
tal panorama, adentra-se no âmbito de eventual incidência do princípio da
vedação da obrigatoriedade de autoincriminação, conhecido por sua expressão em
latim, nemo tenetur se detegere. Mais especificamente, cabe perquirir a
extensão de tal princípio no estrito âmbito de provas documentais. Nesse
sentido, de acordo com Maria Elizabeth Queijo:
Não é da essência da prova documental a necessidade
de cooperação do acusado, como se verifica em outras provas. Contudo, há
situações em que este pode ser chamado a colaborar. Isto ocorre, v.g., quando o
averiguado for intimado a entregar documentos que estejam em seu poder. Pode
acontecer que, dado o conteúdo dos citados documentos, da sua entrega possa
advir autoincriminação do acusado. É desse prisma que será abordada a prova
documental com referência ao nemo tenetur se detegere.[3]
Portanto, além do Ato Declaratório Interpretativo ser ilegal por ter mudado o entendimento da lei, resta evidente que o contribuinte não é obrigado a entregar a documentação que possa levar ao seu indiciamento futuro, em decorrência do princípio da vedação à autoincriminação.
O
art. 9 da Lei 13.254/2016 determina que em caso de "declarações ou documentos
falsos relativos à titularidade e à condição jurídica dos recursos, bens ou
direitos" o contribuinte fica excluído do RERCT, e consequentemente fica
impossibilitado de receber as garantias da extinção da punibilidade. Nesse
sentido:
Ocorrendo "exclusão" ou "não-adesão" ao RERCT,
entretanto, tornam-se inaplicáveis as disposições desse regime especial,
possibilitando a exigência de tributos, juros, multas, assim como a aplicação
de penalidades cíveis, penais e administrativas, conforme o caso. Essas
providências, entretanto, demandam a aplicação das disposições legais ao caso
concreto, demonstrando-se, mediante a linguagem das provas, a concretização dos
respectivos fatos jurídicos (fato jurídico tributário, ilícito penal, ilícito
administrativo etc.).[4]
Assim, a partir da citação supracitada resta evidente a possibilidade de instauração de procedimento investigatório em caso de exclusão.
Já
o §2º do art. 9º da Lei de Repatriação enfatiza que em caso de exclusão do
contribuinte, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios
só poderá ocorrer se houver provas documentais, além da DERCAT. A redação de
tal dispositivo é a seguinte:
Art. 9º, § 2º: Na hipótese de exclusão do
contribuinte do RERCT, a instauração ou a continuidade de procedimentos
investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente
poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração
do contribuinte.
Portanto, consta na própria Lei uma impossibilidade expressa da utilização da DERCAT como indício para a instauração de procedimento administrativo, o, ainda, inquérito policial. Ou seja, mesmo em situação de exclusão, a declaração, por si, é inapta a instauração de procedimento investigatório. Necessário seria que houvesse evidências documentais "não relacionadas à declaração do contribuinte". Essa expressão pode gerar alguma sorte de criatividade hermenêutica, o que, em matéria penal, sabidamente costuma redundar em interpretações expansivas do jus puniendi¸ ao arrepio de limites dogmáticos e balizas constitucionais.
A questão central dessa reflexão reside em saber se a DERCAT pode servir de elemento informativo em inquérito policial, mesmo a despeito de previsão expressa na Lei que parece vedar tal possibilidade, além de limites principiológicos como a noção do nemo tenetur se detegere.
E aqui utilizamos a expressão "elemento informativo", de modo a diferenciá-la de "prova", no âmbito do processo penal.
Ambas correspondem a elementos que alicerçam, em etapas distintas, o Processo penal, cuja orientação é retrospectiva, ou seja, voltada a elucidar a veracidade de afirmações em uma reconstrução dos fatos pretéritos por meio do acervo probatório. Isso não implica - e nem seria possível - compreender a reconstrução de fatos passados como reconstrução da verdade, eis que o conceito de "verdade real" é absolutamente falacioso, desde um prisma de matriz filosófica e, tanto mais, nos estreitos limites de reprodução de fatos pretéritos por meio de mecanismos probatórios processuais.
De
acordo com Cândido Dinamarco, Gustavo Badaró e Bruno Vasconcellos:
Prova é a demonstração, no processo, da veracidade
das afirmações de fato relevantes para o julgamento. Provar é demonstrar essa
veracidade. A realização da prova, ou sua produção, é feita mediante o emprego
de fontes de prova legitimamente obtidas e a devem ser produzidas em juízo
durante regular aplicação das técnicas representadas pelos meios de provas.[5]
Partindo
desse conceito, é possível compreender que as provas são os mecanismos que
baseiam as decisões dos julgadores sobre a ocorrência ou não de determinado
crime, entretanto, elas devem ser produzidas durante a instrução processual,
observando o contraditório e a ampla defesa, princípios estes resguardados pelo
art. 5, inciso LV da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Ainda,
o artigo 155 do Código de Processo Penal (CPP) enfatiza a necessidade da
produção da prova sob o crivo do contraditório e da ampla defesa:
CPP, art. 155: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão
exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas
as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas
Portanto, ainda que o julgador entenda que existem todas as comprovações necessárias para o julgamento, é necessário que os elementos informativos produzidos durante o Inquérito Policial sejam realizados novamente, sempre que possível (ressalvadas hipóteses do final do art. 155 do Código de processo penal), observando os princípios constitucionais.
Diferentemente da prova, os elementos informativos são colhidos na fase de investigação sem a ocorrência de contraditório e ampla defesa, e não podem ser os únicos subsídios para lastrear as decisões judiciais isso porque eles apontam um possível suspeito do crime.
Entretanto,
em que pese os elementos informativos não possam, isoladamente, embasar as
decisões judiciais, eles não podem ser ignorados, devendo ser observados
conjuntamente com as provas dos autos. Esse entendimento já está sedimentado no
Superior Tribunal de Justiça:
Portanto, não se admite,
no ordenamento jurídico pátrio, a prolação de um decreto condenatório
fundamentado, exclusivamente, em elementos informativos colhidos durante o
inquérito policial, no qual inexiste o devido processo legal (com seus
consectários do contraditório e da ampla defesa). No entanto, é possível que se
utilize deles, desde que sejam repetidos em juízo ou corroborados por provas
produzidas durante a instrução processual.[6]
Assim, pode-se
concluir que o elemento informativo deve ser entendido como um indício obtido
antes da gênese de um processo penal, exatamente o que ocorre com a Declaração
de Regularização Cambial e Tributária (DERCAT).
3. Da natureza jurídica
da DERCAT e sua impossibilidade de uso como elemento informativo para
instauração de Inquérito policial
Como visto anteriormente, a DERCAT consiste em uma declaração necessária à regularização cambial e tributária em regime especial, prevista na Lei de repatriação. Ocorre que, também como já delineado, há hipótese de exclusão do programa de repatriação, nos termos do art. 9º da Lei de repatriação. Neste panorama, ter-se-ia a DERCAT como uma declaração de bens, direitos e valores no exterior (sem a extinção da punibilidade de delitos relacionados a tais ativos, haja vista a exclusão do programa).
Seria, assim, a DERCAT, em caso de exclusão do programa de repatriação, uma espécie de confissão?
De início, cabe entender o que seria uma confissão, no âmbito do Processo penal. Para parcela da doutrina, trata-se de meio de prova.[7] Por outro lado, há também autores que compreendem a confissão como uma espécie de prova, sendo, sob tal perspectiva, o interrogatório seria um meio de prova, do qual derivaria a confissão.[8]
Sobre a
DERCAT como possível forma de confissão, discorre Flávia Rahal:
Pelo que foi visto até aqui, é inegável que a DERCAT poderá vir a ser
utilizada como elemento de prova e, se assim for, igualmente inegável o fato de
que ela poderá vir a ser tida como verdadeira confissão, já que no âmbito
penal, esta "pode ser traduzida como declaração voluntária, feita por um
imputável, a respeito de fato pessoal e próprio, desfavorável e suscetível de
renúncia".[9]
Há também o posicionamento em sentido contrário, como se defende no presente artigo, uma vez que se partirmos da premissa que confissão é o reconhecimento por parte do acusado dos fatos a ele imputados, não é possível classificar a DERCAT como uma espécie de confissão. Isso porque os fatos surgem a partir da Declaração prestada pelo contribuinte, ou seja, no momento em que ela é realizada, não existiam fatos a serem reconhecidos.
Ainda que não seja
compreendida como uma confissão informal (em fase pré-processual), remanesce a
indagação acerca da possibilidade da DERCAT, sob qualquer ângulo, poder ser
utilizada como elemento informativo ensejador de instauração de Inquérito
policial, como já ocorrido em alguns casos, em segredo de Justiça, por exemplo,
na apuração do delito de evasão de divisas, em situação em que o contribuinte
que fez a declaração ter sido excluído do programa de regularização cambial e
tributária em regime especial.
Acerca do tema, é certo há
limitações principiológicas e legais para a utilização da Declaração de
Regularização Cambial e Tributária como elemento informativo para a instauração
ou continuidade de Inquérito Policial.
Todavia, conforme já
elucidado, a Receita Federal em 2018 mudou os requisitos para a adesão ao
programa de repatriação criando a necessidade da entrega de documentos que
comprovassem a licitude dos bens repatriados, o que foi negado por grande parte
dos contribuintes, já que este não era um requisito a ser cumprido à época da
adesão. Assim, pelo órgão do governo entender que essa negativa feria um dos
requisitos do programa, decidiu excluir os contribuintes que se negaram a
entregar os comprovantes de licitude dos bens do RERCT.
E se não bastasse a exclusão,
ainda abrir-se-ia guarida para se instaurar procedimento fiscal, já que a
recusa a apresentação da documentação solicitada gera a presunção relativa,
mediante prova em contrário, de que os bens são oriundos de origem ilícita, o
que vai de encontro a toda a legislação criada para possibilitar a repatriação dos
valores. Isso porque, a base deste procedimento fiscal, que pode desaguar em um
procedimento judicial, não pode ser a DERCAT, como já vimos acontecer nos
Tribunais do Brasil.[10]
Nas palavras de Arthur M.
Ferreira Neto e Leandro Paulsen:
(...) Isso significa dizer que, mesmo nos casos em que tais bens sejam
apurados da forma mais conservadora possível, ainda assim um contribuinte de
boa-fé não poderá ter plena confiança de que estará livre de posteriores
questionamentos por parte das autoridades fiscais A tudo isso se soma a
relativa abertura que se deu às autoridade públicas para disputarem a
veracidade das declarações efetuadas ou discordarem do seu teor, o que
permitirá o início ou a reabertura de procedimentos investigatórios, o que, como
se verá, poderá culminar na eventual decretação da nulidade da DERCAT enviada
ou na exclusão posterior do contribuinte do Regime Especial ao qual imaginou
que estava aderindo. E evidentemente ninguém está disposto a tranquilamente
promover a confissão irretratável e irrevogável de determinados crimes, se esse
mesmo ato confessional puder, posteriormente, não apenas servir de base para o
início de procedimento investigatório, mas também levar à posterior exclusão
daquele mesmo regime de anistia que o motivou a reportar os ilícitos cometidos
no passado.[11]
No entanto, para que se
ocorra o quanto descrito no excerto doutrinário acima, existem limitações
principiológicas e legais, assim, conforme será demonstrado a seguir:
Em
primeiro lugar, o princípio de vedação a obrigatoriedade de produzir provas
contra si impede a utilização da Declaração de Regularização Cambial e
Tributária como elemento informativo para a Instauração de Inquérito Policial.
Tal
princípio, também chamado de princípio da não autoincriminação, é conhecido
ainda a partir do brocardo latino nemo
tenetur se detegere. A Constituição Federal elenca em seu artigo 5º, LXIII
a necessidade do preso ser informado de seus direitos, dentre os quais, a
possibilidade de permanecer calado, já o artigo 8º, 2, g, da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos ressalta o direito do acusado de não ser
obrigado a depor contra si mesmo, nem mesmo confessar os fatos a ele imputados.
Para
os professores Humberto Fabretti, Alexis Couto de Brito e Marco Antônio
Ferreira Lima: "A expressão latina nemo
tenetur se detegere significa, literalmente, que ninguém é obrigado a se
descobrir, ou seja, qualquer pessoa acusada da prática de um ilícito penal não
tem o dever de se autoincriminar, de produzir prova em seu desfavor."[12]
De
acordo com as definições do princípio da vedação à autoincriminação, é possível
compreender que ninguém é obrigado a produzir provas contra si, seja durante a
audiência de instrução e julgamento através da confissão, seja por meio de declaração
apresentada à Receita Federal, mesmo antes da instauração de procedimento
investigatório, como é o caso da DERCAT.
Assim
sendo, a Receita Federal não pode utilizar a Declaração - distorcendo sua
finalidade - prestada pelo contribuinte, mesmo após a exclusão do programa de
repatriação, como elemento informativo para a instauração de procedimento
investigatório, já que a Declaração de Regularização Cambial e Tributária não
pode violar o princípio do nemo tenetur
se detegere.
Entretanto,
não existe somente uma limitação principiológica para a utilização da DERCAT
como elemento informativo para a instauração de procedimento judicial, após
exclusão do contribuinte do programa de repatriação, há também uma limitação
legal.
De
acordo com o §12º do artigo 4º da Lei de Repatriação (Lei 13.254/2016), a DERCAT
não pode ser utilizada como único elemento para a instauração de procedimento
investigatório:
§ 12. A declaração de
regularização de que trata o caput não poderá ser, por qualquer modo,
utilizada:
I - como único indício ou
elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal;
II - para fundamentar, direta ou
indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou
cambial em relação aos recursos dela constantes.
Por
seu turno, o art. 9º, § 2º da mesma Lei assim dispõe:
Art. 9º Será excluído do RERCT o
contribuinte que apresentar declarações ou documentos falsos relativos à titularidade
e à condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados nos termos do
art. 1º desta Lei ou aos documentos previstos no § 8º do art. 4º.
(...)
§ 2º Na hipótese de exclusão do
contribuinte do RERCT, a instauração ou a continuidade de procedimentos
investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente
poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração
do contribuinte.
Desta
feita, a declaração não pode servir de ponto de partida para a instauração de
inquérito policial, ainda que se busque por meio da investigação colher outros
elementos informativos independentes à declaração que demonstrem a origem
ilícita dos ativos.
A
hermenêutica do § 2º do art. 9º da Lei de repatriação não deveria ensejar
maiores dificuldades, eis que a redação desse dispositivo é cristalina na
afirmação de que a "instauração" de "procedimento investigatório", na "hipótese
de exclusão do contribuinte do RERCT", "somente poderá ocorrer se houver
evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte".
Assim,
até mesmo documentos eventualmente apresentados (sob exigência de duvidosa
legalidade prevista na "nota 3" do Ato Declaratório Interpretativo n. 5 de 2018
da RFB) não poderiam ser utilizadas como elementos para a instauração de
inquérito policial, eis que fornecidos no bojo da DERCAT.
Sobre
a temática, discorre Flávia Rahal:
De toda forma, não pode deixar
de registrar a finalidade para qual a DERCAT é feita e o grau de incoerência
que é a pretensão do legislador de utilizá-la como meio de prova. É que a
confissão do contribuinte é feita com o propósito específico de obter a anistia
dos crimes indicados na Lei 13.254, os mesmos crimes que acabam por vir a ser
reconhecidos pelo contribuinte em sua declaração. Como pode, então, dentro do
que acima se falou, na hipótese de sua exclusão do programa, vir ela a ser
utilizada como elemento de prova?
Seria o mesmo que aceitar como
possível que nos, casos de delação premiada na qual não houvesse a homologação
judicial, nos termos previstos no §8º, do art. 4º da Lei 12.850/2013, pudessem
os termos de colaboração já prestados pelo pretendente à delação, vir a ser
utilizada como prova contra ele mesmo! Seria uma espécie de estelionato
processual![13]
Assim,
caso após a extinção do contribuinte do programa de repatriação, utilize-se a DERCAT
como elemento informativo para a Instauração de Policial, esta deverá ser
considerada "prova ilícita" (prova aqui no sentido amplo da expressão), devendo
ser desentranhada do processo, conforme o artigo 157 do Código Penal. Além
disso, tudo o que tiver sido derivada desta prova ilícita deverá ser
desentranhada em decorrência do princípio dos frutos da árvore envenenada.
De
acordo com Antônio Scarance, José Raul Gavião e Maurício Zanoide:
A razão dessa exclusão do
processo, da prova derivada direta ou indiretamente da ilícita, compreende-se
como única forma de garantir que o ato inicialmente nulo não gere nenhum efeito
no convencimento judicial. Tal posição é adotada em decorrência da teoria da
árvore dos frutos envenenados: a prova ilícita contamina as demais que a
tomaram por base.[14]
Diante
da análise principiológica e legislativa, portanto, resta evidente a
impossibilidade da utilização da Declaração de Regularização Cambial e
Tributária como elemento informativo para a instauração de Inquérito Policial.
4.
Conclusão
A Lei de Repatriação (Lei n. 13.254/2016) surgiu para regularizar os ativos de origem lícita mantidos no exterior, e como consequência aumentar a arrecadação financeira no território brasileiro.
Entretanto,
para que essa adesão ao programa fosse efetivada, far-se-ia necessária a
Declaração da origem lícita dos bens (DERCAT), declaração esta, que não pode
ser confundida, sob qualquer ângulo, com uma confissão, na hipótese de se
vislumbrar que há ativos do contribuinte no estrangeiro, mas que eles
possuiriam origem ilícita.
Os
riscos decorrentes da insegurança jurídica brasileira, em um panorama de normas
pouco claras e sólidas em seu âmbito interpretativo se materializaram em
um baixo índice de adesão ao Programa de repatriação.[15]
O
Ato Declaratório Informativo SRFB 05/2018 que tinha como objetivo dirimir as
possíveis dúvidas causadas só gerou mais incertezas, já que, ao invés somente
esclarecer a Lei, alterou o entendimento já adotado desde 2016. Isso porque em
nenhum artigo da Lei 13.254 continha a necessidade de o contribuinte apresentar
documentações que comprovassem a origem lícita dos bens.
Consequentemente,
muitos contribuintes que aderiram ao programa antes da mudança de entendimento
da Receita Federal não entregaram as documentações solicitadas por entender,
corretamente, que não eram obrigados, já que essa não era uma necessidade
quando da adesão ao RERCT.
Não
concordando com a posição adotada pelos contribuintes, a Receita Federal os
excluiu do programa o que levou, após processo administrativo, inclusive a
instauração de Inquérito Policial com base única e exclusivamente na Declaração
de Regularização Cambial e Tributária (DERCAT), como ponto de partida. Como
demonstrado, trata-se de prática indevida, conforme a limitação legal e o
princípio da não autoincriminação.
Como
muito bem elucida Flávia Rahal:
Há muitas dúvidas e muito ainda
a se definir no que toca à aplicação do Programa de Anistia. Ainda assim, de
ponto de vista de suas consequências no âmbito penal, é inegável que limites
claros hão de ser impostos, sob pena de transformarmos o que foi criado para
beneficiar; em caminho ilegal de obtenção de provas. [16]
Assim,
em um país que insiste em burocratizar sua economia em um emaranhado de normas
excessivas e conflitantes temos no tema objeto deste escrito uma situação
especialmente deletéria de inobservância de geras e limites do jus puniendi,
em situação que, de partida, deveria ter sentido contrário (de anistia por meio
de extinção da punibilidade de condutas em tese delitivas).
Vislumbra-se,
assim, mais um exemplo, que se soma a farto repertório, de legislação e
decorrente interpretação que distorce finalidades legítimas de desenvolvimento
econômico, com regularização de ativos e consentânea arrecadação tributária,
transformando-se em mecanismo - de ocasião - de repressão penal, como seu velho
e falacioso cariz de panaceia a todo e qualquer problema, bem como com suas já
conhecidas características de ineficiência, desproporcionalidade e insegurança
hermenêutica.
[1]
Sobre a expressão, cf. FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Sobre la "administrativización" del derecho
penal em la "sociedad del riesgo". Um apunte sobre la política criminal a
principios del siglo XXI. In: Revista Derecho penal conteporáneo,
nº 19, abr.-jun./2007.
[2]
Discorrendo sobre tais características no âmbito do Direito penal econômico,
vide FUZIGER, Rodrigo. Metalinguagem e compliance: por um delineamento dos
limites de imputação dos compliance officers. Revista de direito penal
econômico e compliance, v. 1, p. 61-92, 2022, p. 62-65.
[3]
QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de não produzir prova contra si mesmo:
O princípio nemo tenetur se
detegere e suas
decorrências no processo penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª edição, 2012, p.
307.
[4]
TOMÉ, Fabiana del Padré. A Prova no
Direito Tributário. São Paulo: Editora Noeses, 2016, 4ª edição, p. 255.
[5]
DINAMARCO, Cândido Rangel, BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, LOPES, Bruno
Vasconcelos
Carrilho. Teoria Geral do Processo. São Paulo:
Editora JusPodivm, 2020, p. 427.
[6]
STJ, Recurso Especial nº 2022413/PA, 6ª Turma, Min. Rel. para o Acórdão Rogério
Schietti Cruz, Data de Julgamento: 14/02/2023 e Data de Publicação: 07/03/2023.
[7] Nas
palavras de Guilherme Nucci: "Inegável que a confissão é um meio de prova.
Trata-se de um dos instrumentos disponíveis para o julgador chegar a verdade
dos fatos e, por consequência, ao seu veredicto." NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no
Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, 2ª edição,
p. 85.
[8] "Na
verdade, a confissão não é um meio de prova. É a própria prova, consistente no
reconhecimento da autoria por parte do acusado. Meio de prova é o
interrogatório, em que ela pode ocorrer, ou a audiência em que se lavra um
termo em virtude do seu comparecimento espontâneo. Todavia, tem sido
tradicionalmente tratada nos códigos como meio de prova." GRECO, Vicente Filho.
Manual de Processo Penal. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 326.
[9]
JUNIOR, Aldo; SALUSSE, Eduardo; ESTELLITA, Heloisa. Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT): Aspectos
Práticos. São Paulo: Editora Noeses, 2016, p. 198.
[10]
Como ocorreu no caso em que um contribuinte precisou ajuizar ação anulatória de
ato administrativo isso porque após 4 anos de adesão ao programa de
repatriação, a Receita Federal o intimou para "comprovar a origem dos recursos
utilizados para a aquisição dos respectivos ativos repatriados" conforme
salienta em suas contrarrazões apresentadas no Agravo de Instrumento de nº
1000868-24.2022.4.01.0000, em trâmite na 7ª Turma do Tribunal Regional da 1ª
Região, de Relatoria do Desembargador Federal Hercules Fajoses.
[11]
FERREIRA NETO, Arthur M. PAULSEN, Leandro. A
Lei de "Repatriação": Regularização Cambial e Tributária de Ativos Mantidos no
Exterior e não Declarados às Autoridades Brasileiras, Editora Quartier
Latin do Brasil, 1ª edição, São Paulo, 2016, p. 73.
[12] BRITO,
Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto B.; LIMA, Marco Antônio F. Processo Penal Brasileiro, 4ª edição.
São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788597020403. Disponível em:
https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597020403/. Acesso em: 07 abr.
2023.
[13]
JUNIOR, Aldo; SALUSSE, Eduardo; ESTELLITA, Heloisa. Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT): Aspectos
Práticos. São Paulo: Editora Noeses, 2016, p. 201.
[14] FERNANDES,
Antônio S.; ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de. Provas no processo penal: estudo comparado.
São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
[15]
Estimativa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) apontou que o montante
com o imposto de renda e multa de regularização foi de R$ 1,615 bilhão, valor
muito inferior ao estimado tanto na Lei Orçamentária Anual (LOA) quanto no
relatório de avaliação bimestral do governo.
[16]
JUNIOR, Aldo; SALUSSE, Eduardo; ESTELLITA, Heloisa. Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT): Aspectos
Práticos. São Paulo: Editora Noeses, 2016, p. 208.
Compartilhar