Artigo - 23/09/2025 | Escrito por Isabela Guaritá

Análise do Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC e a lacuna deixada pelo Tema 990/STF

Análise do Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC e a lacuna deixada pelo Tema 990/STF a respeito dos limites da atuação suplementar da Receita Federal na apuração de ilícitos criminais para subsidiar a representação para fins penais por delitos não tributários.

  

1.     Considerações introdutórias à luz da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 990.

 

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº. 1.055.941/SP submetido à sistemática da repercussão geral (Tema 990), firmou a orientação de que é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da Unidade de Inteligência Financeira (UIF) e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil (RFB) - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.[1]

 

O julgamento provocou diversas discussões sobre questões incidentes à tese fixada, como o notório dissenso sobre a legalidade da requisição de informações de forma ativa e direta (sem autorização judicial) à Receita Federal e à UIF, o que vem sendo objeto de divergência entre a 1ª e a 2ª Turmas da Suprema Corte até os dias atuais.

 

Outro ponto que vem gerando decisões divergentes entre os Tribunais Superiores e que não foi amplamente debatido no julgamento do RE nº 1.055.941/SP diz respeito aos limites de atuação e ao conteúdo das representações para fins penais (RFP) compartilhados entre o Fisco e os órgãos de persecução penal.

 

Em relação aos crimes contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137/1990 e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, o entendimento firmado pelo Tema 990 espelha o art. 83 da Lei 9.430/1996, dispondo que a representação fiscal para fins penais (RFFP) será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final na esfera administrativa sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente, contendo as informações e documentos angariados no curso do procedimento administrativo, resguardado o sigilo bancário e fiscal.

 

Todavia, a mesma condicionante (término do processo administrativo) não vale para outros crimes não tributários (que não têm sua tipificação condicionada ao lançamento definitivo), o que permite o compartilhamento de informações com os órgãos de persecução penal antes da conclusão do processo administrativo, nos termos do art. 17 da Portaria RFB nº 1.750/18:

 

Art. 17. A representação para fins penais referente a fatos que configuram, em tese, crimes de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos, previstos nos arts. 293, 294 e 297 do Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 (Código Penal), crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores definidos no art. 1º da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e crimes contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional e contra administração pública estrangeira, deverá ser formalizada e protocolizada por servidor da RFB no prazo de 10 (dez) dias, contado da data em que este tiver ciência do fato.[2]

 

Neste aspecto, a controvérsia recai sobre os limites de atuação da Receita para formalizar a representação para fins penais de outros delitos que não tributários (RFP), tendo em vista que dizem respeito a condutas estranhas à atribuição institucional do órgão fiscal.

 

A questão foi deliberada de maneira sucinta pelo Supremo na fixação da Tese 990, como se percebe dos debates de julgamento:

 

“O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (PRESIDENTE E RELATOR): Mas a Receita, para comunicar os órgãos persecutórios, poderia informar os valores globais, ou seja: ‘Há aqui uma suspeita de tais crimes, porque entre a declaração e a movimentação não há compatibilidade’. Ela pode dar essa informação.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Mas, constatando o descompasso entre o patrimônio informado e o rendimento...

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (PRESIDENTE E RELATOR): Ela informa o órgão persecutório

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Aí, sim.

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (PRESIDENTE E RELATOR): Foi o que nós decidimos.”[3]

 

No voto-condutor do Min. Dias Toffoli, em síntese foi destacado:

 

 “os documentos ou elementos de provas acobertados por sigilo fiscal ou sigilo bancário obtidos pela administração tributária em razão das suas funções institucionais que contiverem dados sobre a situação econômica ou financeira de contribuinte ou de terceiros estranhos ao fato investigado ou sobre a natureza ou o estado de seus negócios ou atividades (e.g. extratos bancários e financeiros, declaração de ajuste anual do IRPF) somente podem integrar os autos de inquérito ou de processo judicial mediante a regular quebra de sigilo, a qual está sujeita a prévia autorização judicial”.[4]

 

O exame do acórdão nos conduz à conclusão de que, em relação às informações e aos documentos que devem constar da representação para fins penais (RFP), a Receita Federal, ao se deparar com indícios de crimes não tributários, está autorizada a encaminhar somente dados globais ao órgão persecutório, sendo vedada a transferência da íntegra de documentos acobertados pelos sigilos fiscal e bancário sujeitos à prévia autorização judicial.

 

Todavia, o acórdão não se aprofundou sobre a legalidade das diretrizes procedimentais adotadas pela Receita Federal e das informações e documentos passíveis de serem compartilhados diante de ilícitos não tributários, observados os limites de sua atribuição funcional ao perseguir elementos estranhos à atividade fiscal-tributária e em respeito as garantias constitucionais da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X) e da inviolabilidade de dados (art. 5º XII).

 

2.     As decisões proferidas no Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC e a barreira de aplicabilidade da Tese 990/STF no que diz respeito à avaliação da licitude do conteúdo dos relatórios para fins penais compartilhados pelo Fisco com órgãos de persecução penal: a falta de contornos mais concretos quanto à atuação suplementar da Receita Federal na apuração de ilícitos criminais não tributários.

 

Em meio as controvérsias que ainda recaem sobre a interpretação e a aplicabilidade da tese fixada no Tema 990, as decisões proferidas no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC[5]  incidem sobre importante ponto relacionado à comunicação espontânea da Receita Federal com o Ministério Público: o órgão fiscal pode, a partir de indícios de ocorrência de crimes não tributários, utilizar de seu amplo acesso aos dados dos contribuintes para realizar diligências autônomas, reunir documentos e informações sensíveis, e compartilhar o resultado com os órgãos de persecução penal? Tudo isto à mercê de requisição prévia ou autorização judicial?

 

O presente estudo pretende examinar aspectos que pesam sobre os limites da atividade investigativa realizada pela Receita Federal enquanto órgão de fiscalização tributária e de controle aduaneiro, tendo como enfoque o Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC, interposto contra acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC nº 119.297/SC.[6]

 

A fim de proporcionar uma compreensão mais clara sobre a questão abordada, cabe tecer breves apontamos sobre o caso em análise. No mencionado Recurso em Habeas Corpus, o colegiado da Quinta Turma concedeu a ordem para declarar a ilicitude das provas decorrentes das informações que integravam Representação Fiscal para Fins Penais por Outros Crimes, encaminhada pela Receita Federal ao Ministério Público, sem autorização judicial, que motivaram a instauração de investigação criminal e posteriores denúncias pelos crimes de organização criminosa, lavagem de capitais e corrupção ativa.

 

Conforme consta dos autos do processo, os documentos anexos à RFFP consistiam em i) análise contábil da empresa fiscalizada; ii) consulta CNIS; iii) relação de notas fiscais; iv) fotografia google maps; v) consulta CNIS; vi) consulta curriculum lattes; vii) termo de referência – DEPEN; viii) contratos e demais instrumentos firmados pela contribuinte fiscalizada com empresa suspeita de integrar a prática delitiva.

 

No voto do Relator, Min. Joel Ilan Paciornik, duas premissas foram analisadas: 1) se os dados incontroversamente compartilhados pela RFB se caracterizam como sigilosos, ou são meros dados globais, como implicitamente autorizava a decisão liminar do STF; 2) Admitindo-se que se tratava de dados acobertados pelo sigilo bancário e fiscal, foi regular – em consonância com a interpretação conforme do Tema 990 – o compartilhamento da forma precipitada em que levado a efeito.[7]

 

Ao conceder a ordem de habeas corpus, a Quinta Turma considerou que a instauração do inquérito policial teve como marco inicial diligências investigativas realizadas por analistas fiscais, antes do encerramento do Processo Administrativo Fiscal, “em procedimentos informais e não urgentes”, que compartilharam “informações detalhadas e constitucionalmente protegidas sobre indivíduos ou empresas, sem a prévia e devida autorização judicial”.[8]

 

Alegando que houve contrariedade ao entendimento da Suprema Corte fixado no Tema 990, o Ministério Público Federal interpôs o ora em exame Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin.

 

Por meio de decisão monocrática, o Ministro Relator deu provimento ao recurso ministerial, cassando o acórdão do RHC nº 119.297/SC e restabelecendo o entendimento das instâncias ordinárias que consideraram a licitude do material compartilhado pelo Fisco.

 

Como razão principal de decidir, foi sublinhado que o Tema 990 permitiu o compartilhamento de representação para fins penais referentes a outros crimes que não os tributários, antes do término do processo administrativo, na medida em que tais delitos, por sua própria natureza, não demandam lançamento definitivo, “como equivocadamente entendeu o Superior Tribunal de Justiça”.[9]

 

A decisão foi posteriormente complementada em razão do acolhimento parcial de embargos de declaração opostos pela defesa dos recorridos, sendo importante para o estudo do caso destacar o seguinte trecho exarado pelo Ministro Relator:

 

“Não prospera, ademais, a afirmação dos embargantes de que foram fornecidos “dados detalhados e críticos da atividade empresarial’, ‘minúcias que não se contêm nas estremaduras do conceito de ‘montantes globais’ permitidos pelo Tema 990”, conforme se depreende do que ficou assentado no acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (...)

Por fim, é de se observar que, de fato, a parte dispositiva da decisão aqui embargada padece de obscuridade, vício que pode e deve ser sanado pela via eleita. Isso porque a análise jurídica empreendida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 990 diz respeito tão somente ao ato de compartilhamento de dados fiscais com Ministérios Público, ou seja, se é possível, ou não, que a Administração Tributária compartilhe, com o Órgão de persecução penal, dados obtidos a partir do exercício de sua função institucional. A eventual licitude do ato de compartilhar, portanto, não se confunde com a licitude propriamente dita do material que foi compartilhado.

No caso concreto dos autos, o provimento dado ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal só teve o condão de validar o ato de compartilhamento de dados efetuado pela Receita Federal com o Parquet, na medida em que, em momento algum, analisou a licitude das provas lá compartilhadas, o que, por óbvio, não seria possível pela estreita via extraordinária”[10]

 

Como se observa, o provimento do Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC teve como fundamento central o fato de que a situação sub judice estava acobertada pelo entendimento firmado no Tema 990/STF, visto que se trata de compartilhamento de representação para fins penais por outros crimes (RFP) entre a Receita Federal e o Ministério Público, o que torna inaplicável a exigência do encerramento do Processo Administrativo diante da notícia de delitos que não sejam os de ordem tributária.

 

Por outro lado, em sede de embargos de declaração, o Ministro Relator esclareceu que a análise realizada – tanto no caso vertente, quanto no RE nº1.055.941/SP, – recai exclusivamente sobre a constitucionalidade do ato de compartilhamento em si, ou seja, se é ou não permitido à Administração Tributária repassar dados adquiridos no exercício de sua função institucional para órgão de persecução penal, ressaltando que tal avaliação não se confunde com a licitude do conteúdo dos relatórios elaborados pelos analistas fiscais.

 

O que se extrai do pronunciamento, portanto, é que há um hiato entre a tese fixada no Tema 990 e a sua aplicabilidade concreta nas hipóteses em que a Receita Federal se depara, no curso de sua atividade fiscalizatória, com delitos não tributários, abrindo uma larga – e perigosa - margem interpretativa sobre quais seriam as diligências apuratórias e os dados globais legalmente passíveis de serem realizadas e compartilhados com o Ministério Público.

 

3.     Uma análise partindo das normativas internas da Receita Federal: a ausência de previsão legal que autorize o Fisco a praticar atos de investigação criminal. Limites que devem ser observados para evitar o desvio de função e a observância à competência específica dos órgãos persecutórios.

 

A Portaria RFB nº 617/2014 dispõe sobre a atividade de inteligência fiscal no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, prevendo expressamente que seu desempenho visa tão-somente subsidiar os órgãos responsáveis pela persecução penal no combate a ilícitos tributários e não tributários:

 

Art. 2º A atividade de inteligência fiscal compreende o exercício sistemático de ações especializadas visando à obtenção, análise, difusão e salvaguarda de dados e conhecimentos no interesse da Administração Tributária e Aduaneira, com os seguintes objetivos:

IV - subsidiar os órgãos responsáveis pela persecução penal no combate aos ilícitos tributários, aduaneiros, à lavagem de dinheiro e a outros ilícitos praticados em detrimento da Administração Tributária Federal, inclusive aqueles que concorram para sua consumação. [11]

 

A falta de contornos mais concretos quanto à atuação suplementar da Receita Federal na apuração de ilícitos criminais se torna ainda mais emblemática diante das recentes mudanças na Portaria RFB nº 1.750/2018, norma interna que regulamenta as diretrizes das representações para fins penais (RFFP e RFP), elaboradas pelos auditores-fiscais no exercício de suas atribuições.

 

No tocante à Representação para Fins Penais de outros crimes que não os tributários (RFP), a antiga redação do art. 17, § 4º estabelecia que “Não poderão ser incluídas na representação para fins penais de que trata este artigo informações sobre a situação econômica ou financeira, inclusive sobre a natureza e o estado de negócios ou atividades realizados pelo sujeito passivo ou terceiro contra os quais tenha sido formalizada.”[12]

 

Todavia, a Portaria nº 393, de 11 de janeiro de 2024, trouxe mudança substancial no dispositivo, passando o §4º a versar sobre a proibição de inclusão de “informações tributárias obtidas pela RFB com base em tratados, acordos ou convênios internacionais para o intercâmbio de informações tributárias, exceto se houver anuência e estiver autorizado na legislação interna do país informante”.[13]

 

A despeito do avanço quanto à eficácia e aplicabilidade dos tratados internacionais de matéria tributária, não há dúvidas que a alteração representa grave retrocesso no que toca à inviolabilidade dos dados financeiros resguardadas por sigilo, visto que abre margem para um desgovernado (e ilimitado) intercâmbio de informações do sujeito passivo ou de terceiro por meio de uma representação para fins penais.

 

Sujeitas ao devido controle de constitucionalidade, certo é que normativas infralegais, como é caso de um simples ato administrativo regulamentar, não podem, ao serem criadas, dispor contrariamente a direitos fundamentais que protegem o cidadão contra abusos e intromissões ilegítimas dos entes estatais.  

 

Diante da contrariedade constitucional da nova redação do §4º, sobressai a orientação prevista no § 3º da Portaria nº 1.750/2018, de que “A representação para fins penais deverá conter os elementos de que trata o caput do art. 5º, cujas disposições a ela se aplicam, no que couber”.[14]

 

Por sua vez, o referido caput do art.5º, que dispõe sobre a confecção da Representação Fiscal para Fins Penais (RFFP) referente a crimes contra a ordem tributária ou contra a previdência social, determina que o documento deverá conter: I - a identificação das pessoas físicas a quem se atribua a prática do delito penal, da pessoa jurídica autuada e, quando couber; II - a descrição dos fatos caracterizadores do ilícito penal e o seu enquadramento legal; e  III - a identificação das pessoas que possam ser arroladas como testemunhas, assim consideradas aquelas que tenham conhecimento do fato ou que, em razão de circunstâncias a ele relacionadas, deveriam tê-lo.[15]

 

A exegese entre o art.5º e a obrigação de comunicação prevista no art.17 da Portaria nº 1.750/2018 deixa claro que a representação para fins penais (RFP) possui caráter meramente instrutivo, cingindo-se a fornecer informações e dados objetivos coletados no âmbito de procedimento administrativo, quando identificado indícios de práticas delitivas estranhas à atribuição do órgão fiscal, a fim de subsidiar a atividade dos órgãos de persecução penal competentes, estes sim legitimados a desenvolver ações de prática investigatória e que são sujeitas ao devido controle judicial.  

 

Ainda que se aceite a possibilidade de a Receita Federal elaborar relatórios relativos a crimes que não os tributários, o que inevitavelmente gera uma espécie de opinio delicti periférica, já que nos termos do art. 5º da Portaria nº 1.750/2018 a representação deve conter a “a descrição dos fatos caracterizadores do ilícito penal e o seu enquadramento legal”, devem ser respeitados os limites das competências institucionais para que não haja desvio de sua função fiscal-tributária, que não se confunde com as de competência da Polícia Judiciária.

 

Sobre o ponto, salutar as considerações trazidas por Igor Mauler Santiago e Fábio Tofic:

 

“(...) mesmo nos crimes tributários, a competência da Receita limita-se a uma proposta de tipificação, a partir dos fatos geradores apurados e descritos na Representação Fiscal para Fins Penais. Proposta que, é claro, não vincula a polícia e muito menos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal. Tampouco lhe cabe adentrar temas como a análise dos antecedentes e da personalidade do agente, a distinção entre concurso material e continuidade delitiva, a prescrição da pretensão punitiva, entre tantos outros de índole estritamente criminal”.[16]

 

O próprio Decreto nº 11.907/2024, que dispõe sobre a estrutura organizacional da Fazenda, restringe a utilização do aparato fiscal para fins de controle aduaneiro e prevenção delitiva, estabelecendo, em seu art. 27, inc. XX, que a Secretaria Especial da Receita Federal pode “planejar, coordenar e realizar as atividades de repressão aos ilícitos tributários e aduaneiros, inclusive contrafação, pirataria, entorpecentes e drogas afins, armas de fogo, lavagem e ocultação de bens, direitos e valores, observada a competência específica de outros órgãos”(destaque próprio).[17]

 

Da leitura do dispositivo três pontos devem ser levantados: i) a previsão abre espaço para adoção de medidas voltadas à repressão e prevenção delitiva e não para uma investigação criminal indireta; ii) os delitos devem guardar relação com a função precípua da Receita Federal de fiscalização tributária e controle aduaneiro; iii) há advertência expressa impondo que o limite de atuação encontra barreira quando esbarra na competência específica de outros órgãos, servindo de parâmetro definidor quanto às atribuições permitidas.

 

O que se conclui da análise das normativas internas da Receita Federal é que não há previsão legal que autorize o Fisco a praticar atos de investigação criminal e, mesmo no desempenho de seu papel voltado à atividade de inteligência fiscal e repressão delitiva, não se pode admitir apurações direcionadas e exploratórias (diferentes de indícios encontrados de forma fortuita no bojo de fiscalização tributária em andamento); quebras de sigilos indevidas sob a fachada de mero exercício da atividade-fim fiscalizatória (acesso imotivado a dados e documentos dos contribuintes) e usurpação de função própria da Polícia Judiciária ou do Ministério Público (sua atuação deve se harmonizar com a atividade institucional de exação fiscal em que se insere).

 

Portanto, ao passo que indiscutível a proibição do compartilhamento de informações resguardadas por sigilo constitucional, sem prévia autorização judicial, é também inadmissível que os servidores da Receita empreendam ações típicas e exclusivas dos agentes de investigação criminal, como a colheita de depoimentos para apuração de prática delitiva não relacionada ao possível ilícito tributário; interseção de dados com terceiros não relacionados à apuração fiscal em curso; a utilização de contratos comerciais e profissionais e outros documentos que envolvam a atividade econômica do contribuinte e de terceiros que não guardem relação com a apuração fiscal em curso; aferição sobre rendimentos de fontes lícitas e a efetividade de serviços prestados pela pessoa física/jurídica; a realização de monitoramento de vigilância de atividade empresarial, elaboração de tabelas com cruzamentos de dados e informações típicas de relatórios  de inteligência policial; cópia de processos judiciais, expedição de ofícios ao Tribunal Eleitoral e a Cartórios para coleta de informações etc.

 

O que se permite ao Fisco, pelo sistema jurídico, no que diz respeito a crimes não tributários, é uma atuação estática, estrita ao ato de comunicação aos órgãos persecutórios sobre indícios de pratica delitiva descobertos no curso de ação fiscalização tributária ou do controle aduaneiro, e para tanto, as informações e documentos compartilhados devem se limitar a demonstrar a existência de tais indícios, não podendo o Fisco, diante do banco de dados que tem a sua disposição, realizar verdadeira devassa na esfera privada de indivíduos e empresas, muitas vezes para apuração de fatos que extrapolam as suas atribuições e, mais grave ainda, deixando de lado o dever de resguardo das informações do contribuinte acobertadas por sigilo constitucional.

 

4.     Conclusão

 

Seja do ponto de vista jurisprudencial, seja do normativo, a Receita Federal não possui respaldo para exercer atividades próprias de Polícia Judicial e do Ministério Público, instituições com atribuições legais e constitucionalmente previstas para o exercício da persecução criminal.

 

Ainda que através do Tema 990 o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a legalidade do compartilhamento de dados dos contribuintes entre a Receita Federal e os órgãos de persecução penal sem prévia autorização judicial, o julgamento estabeleceu que somente dados e valores globais, que não adentram a esfera de sigilo fiscal e bancário do contribuinte, podem ser compartilhados por meio das RFP ou RFFP.

 

A delimitação dos dados e valores globais passíveis de serem compartilhados ficou restrita a uma análise superficial e exemplificativa, utilizando como parâmetros as garantias constitucionais (CF, art. 5º, X e XII) e as normativas internas da Receita Federal, sendo consignado que estas “não admitem que a representação fiscal para fins penais (RFFP) seja instruída com documentos (na acepção ampla da palavra) completos (integrais) contendo informações sensíveis atinentes ao sujeito passivo e, principalmente, a terceiros protegidas por sigilo fiscal (ou bancário)”[18]. Como exemplos, o RE 1.055.941/SP constantemente faz referência à proibição da íntegra da juntada de declarações de imposto de renda e de extratos bancários obtidos junto às instituições financeiras.

 

Por sua vez, as normativas internas da Receita Federal (Portaria RFB nº 1.750/2018 e Decreto nº 11.907/2024) que discorrem sobre a elaboração e compartilhamento dos relatórios relativos a crimes que não os tributários (RFP), devem ser interpretadas de maneira restritiva, tanto para impedir que informações sigilosas sejam indevidamente transmitidas, como para impedir um desvio de finalidade funcional e a usurpação da competência das autoridades investigativas criminais.

 

Trazendo toda esta análise para a decisão que deu provimento ao Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC, importa recordar que embora o Ministro Relator tenha restabelecido o entendimento sobre a licitude do material compartilhado pelo Fisco através de RFP, validou apenas o ato de compartilhamento em si e não se debruçou sobre a licitude das provas constantes no Relatório.

 

Caso a apreciação tivesse assim se estendido, certamente aspectos aqui expostos estariam sob enfoque, questionando-se se apenas dados globais foram compartilhados no RFP e se não houve violação ao sigilo bancário e fiscal (Tema 990/STF), se os documentos e informações que o integram limitam-se à identificação de pessoas e à descrição de fatos caracterizadores do ilícito penal (art. 5º, caput, Portaria RFB nº 1.750/2018), e se decorrem da atividade de repressão do Fisco ou se podem ser compreendidos como atos típicos de atividade investigativa (art. 28, inc. XX, Decreto nº 11.344/23)[19].

 

Considere-se, ainda, o fator relevante de que, à época do julgamento do RE nº 1.436.448/SC, vigorava a antiga redação do art. 17, § 4º da Portaria RFB nº 1.750/2018, a qual vedava a inclusão no RFP de informações sobre a situação econômica ou financeira, inclusive sobre a natureza e o estado de negócios ou atividades realizados pelo sujeito passivo ou terceiro.

 

E muito embora a Suprema Corte não tenha se aprofundado sobre os limites de atuação do Fisco e de compartilhamento de dados no caso de crimes não tributários no julgamento do Tema 990, importante ponderação foi realizada no voto-condutor no que compete à representação fiscal para fins penais:

 

“As diligências adotadas nos autos permitiram verificar que, como regra, a Secretaria da Receita Federal repassa ao Ministério Público Federal, na RFFP, a cópia integral dos autos do procedimento ou processo administrativo fiscal (PAF), dos quais podem constar dados sobre movimentações financeiras do sujeito passivo e, principalmente, de terceiros, os quais podem estar sob a proteção do sigilo fiscal (art. 5º, § 5º, LC nº 105/01) e ser estranhos aos fatos criminosos descritos na representação.

Ou seja, na prática hodierna, a RFFP formalizada no âmbito da administração tributária federal é, costumeiramente, instruída com a cópia integral de todos os elementos (atos, termos, documentos, livros, registros etc.) que compõem os autos da respectiva ação fiscal. Em razão disso, acabam sendo remetidos diretamente ao Parquet:

i - declarações de ajustes anuais dos contribuintes;

ii - demonstrativos de financiamentos, como os extratos bancários;

iii - comprovantes de rendimentos tributáveis recebidos de pessoas jurídicas e das respectivas retenções de imposto na fonte (ex.: contracheque);

iv - comprovantes de rendimentos tributáveis recebidos de pessoas físicas e do exterior;

v - comprovantes de rendimentos isentos e não tributáveis;

vi - comprovantes de pagamentos e doações efetuados;

vii - documentos que comprovem a relação de dependência mantida com dependentes informados na declaração de ajuste anual;

viii - contratos celebrados pelo sujeito passivo; extratos bancários de contas correntes, de poupanças e de aplicações financeiras;

ix - livros contábeis, como o livro caixa;

x - demonstrativos de receita;

xi - demonstrativos de despesas de custeio e investimentos

de atividades;

xii - notas fiscais de compras e vendas de produtos e mercadorias;

xiii - contratos de empréstimos etc.

Vide que os documentos encaminhados ao Ministério Público Federal pela Receita Federal, embora respaldados em norma interna (arts. 5º e 6º da Portaria RFB nº 1.750/18), contêm todos os dados sobre a situação econômica ou financeira e sobre a natureza e o estado dos negócios ou atividades do contribuinte (e, ressalte-se, de terceiros), cujo alcance extrapola, em muito, os limites da descrição dos fatos caracterizadores do ilícito penal constante da representação fiscal para fins penais.”[20]

 

 

Se o compartilhamento de dados e documentos reunidos pela Receita, após o término do procedimento administrativo e, portanto, no legítimo exercício de sua função precípua, já foi visto com ressalvas no caso paradigma, justamente em razão da amplitude dos elementos que compõem os autos de uma ação fiscal (“atos, termos, documentos, livros, registros etc.”), sendo considerado que seu alcance “extrapola, em muito” os limites que devem ser observados no intercâmbio de informações para representação fiscal para fins penais, muito mais rigoroso deve ser o grau de tolerância quanto aos relatórios que comunicam indícios de ilícitos não tributários e distantes da atuação do Fisco.

 

Uma coisa são as informações levantadas no curso de ação fiscal que indiquem a prática pelo contribuinte  dos crimes previstos no art. 17 da Portaria nº 1.750/18 – cujo compartilhamento já detém suas ressalvas, como visto acima; outra é permitir que o Fisco, que possui acesso a informações sensíveis e sigilosas para fins tributários, empreenda uma investigação exploratória quando se deparar com indícios de delitos não tributários, elaborando e encaminhando para os órgãos persecutórios verdadeiros dossiês criminais.

 

Quanto ao ponto, de todo válido trazer as considerações do Min. Messod Azulay em julgamento que reconheceu a ilegalidade de investigação realizada pela Receita Federal e a ilicitude das provas compartilhadas com o Ministério Público:

 

“(...) a Receita Federal não pode, a pretexto de examinar incidentes tributários e aduaneiros, investigar delitos sem repercussão direta na relação jurídica tributária. Nessa hipótese, a pertinência temática e finalística denota limitação na atuação e o consequente dever de comunicar os órgãos de persecução tipicamente penal, uma vez que constituído o dever de representação para fins penais. São, portanto, hipóteses distintas que pressupõem posturas, igualmente, diversas.”[21]

 

Na hipótese de indícios de crimes não tributários, os fatos e informações de identificação (art. 5º da RFC) devem ser formalmente comunicados ao Ministério Público para que, a partir daí, se instaure a devida investigação pelo órgão constitucionalmente competente e somente então se inicie as ações típicas da atividade de investigação criminal, garantindo, assim, a reserva de jurisdição e o controle da atuação estatal.   

 

Ademar Borges e Alaor Leite ilustram de forma clara os pontos que fundamentam a abordagem adotada neste estudo:

 

“(...)o trânsito de dados entre órgãos essencialmente diversos é, em si mesmo – e com independência de medidas futuras mais intrusivas – uma relevante intervenção em direito fundamental, que clama por legitimação. Para além disso, um Estado de Direito não se compraz com concentrações informacionais e desvios de finalidade, sobretudo se a resultante for a submissão de cidadãos a processos penais.”[22]

 

Essa gritante ausência de legitimação reflete o entendimento exarado no Recurso Extraordinário nº 1.436.448/SC ao sustentar que a análise jurídica empreendida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 990 não diz respeito à licitude propriamente dita dos dados encaminhados pela Administração Tributária aos órgãos de persecução penal, questão que precisa ser superada para que haja uma harmonização entre o ato de compartilhamento já legitimado, os dados globais autorizados de serem transmitidos, a função institucional dos entes envolvidos e a proteção aos direitos individuais e fundamentais dos cidadãos.  



[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, relator Min. Dias Toffoli, Plenário, julgado em 4 dez. 2019, publicado em 5 out. 2020, fl. 29. Diário de Justiça, Brasília, DF, 5 out. 2020.

[2] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria RFB nº 1.750, de 12 de novembro de 2018, art. 17. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 nov. 2018.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, relator Min. Dias Toffoli, Plenário, julgado em 4 dez. 2019, publicado em 5 out. 2020, fl. 6. Diário de Justiça, Brasília, DF, 5 out. 2020.

[4] Idem, fl. 61.

[5] Recurso Extraordinário nº 1.436.448, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 28 jun. 2023, publicado em 30 jun. 2023. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 jun. 2023 e Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 1.436.448, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 17 out. 2024, publicado em 21 out. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 21 out. 2024.

[6] Recurso em Habeas Corpus nº 119.297/SC, relator Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 21 jun. 2022, publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 27 jun. 2022.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de declaração no Agravo regimental nos embargos de declaração no Recurso em Habeas Corpus nº 119.297/SC, relator Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 21 jun. 2022, publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 27 jun. 2022.

[8] Idem.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.436.448, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 28 jun. 2023, publicado em 30 jun. 2023. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 jun. 2023.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 1.436.448, relator Min. Edson Fachin, julgado em 17 out. 2024, publicado em 21 out. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 21 out. 2024.

[11] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria nº 617, de 17 de novembro de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 nov. 2014.

[12] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria nº 1.750, de 27 de dezembro de 2018. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 2018.

[13] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria nº 393, de 11 de janeiro de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2024.

[14] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria nº 1.750, de 27 de dezembro de 2018. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 2018.

[15] Idem

[16]SANTIAGO, Igor Mauler; SIMANTOB, Fábio Tofic. Sigilo impede Receita de investigar crimes não tributários. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 maio 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/opiniao-sigilo-impede-receita-investigar-crimes-nao-tributarios/. Acesso em: 17 mar. 2025

[17] BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 11.907, de 28 de fevereiro de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 fev. 2024.

[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, relator Min. Dias Toffoli, Plenário, julgado em 4 dez. 2019, publicado em 5 out. 2020, fl. 65. Diário de Justiça, Brasília, DF, 5 out. 2020.

[19] Atual artigo 27, inc. XX do Decreto nº 11.907/2024.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, relator Min. Dias Toffoli, Plenário, julgado em 4 dez. 2019, publicado em 5 out. 2020, fl. 65. Diário de Justiça, Brasília, DF, 5 out. 2020.

[21] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus n. 167.539/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 12 dez. 2023, DJe de 15 dez. 2023.

[22] BORGES DE SOUZA FILHO, A.; LEITE, A. Jurisdição constitucional hesitante e a tarefa de domesticar a persecução penal no Estado de direito: o papel da jurisdição constitucional na construção das fronteiras entre inteligência financeira e persecução penal. REI - Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 342-374, 2024. DOI: 10.21783/rei.v10i2.828.

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